Sunday, May 22, 2016

Saberás que não te amo





















Saberás que não te amo e que te amo,
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem a sua metade de frio.
Amo-te para começar a
... amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.
Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.
O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.




Pablo Neruda,

Prémio Nobel da Literatura de 1971.

esse segredo

























Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado —
Aquele amor cheio de crença e medo ...
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?

 
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca —
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

( Madonna of the Magnificat Detail of the Virgin’s face,1482 -By Sandro Botticelli in the Uffizi, Florence, Italy )

Friday, May 13, 2016

Há uma mulher de música


“NA MINHA POESIA HÁ UMA BUSCA DA MINHA IDENTIDADE
PORQUE EU MESMO NÃO ME CONHEÇO.”

A. Ramos Rosa

INÉDITO

Há uma mulher na minha solidão sem lábios
Que não sei se é azul ou verde
Que se apaga talvez no horizonte
Há uma mulher talvez na palavra solidão
Que nunca se destingue da palavra
Porque é a palavra mesma que não se diz
Porque é a solidão que não é ela

Há uma mulher nos confins da minha ausência
Como uma sombra da minha ausência
Como uma ausência da mesma sombra

Há uma mulher nos lábios da minha solidão
Que nunca chega a ser pronunciada
Ou é o ar de uma sede que não respiro
Ou o nada mesmo de todo a solidão

Há uma mulher de musgo nas minhas pálpebras
E outra que se esconde nos olhos e é a mesma
Há uma mulher de música
No meu sorriso
Há uma mulher de tristeza como o tempo
Na água das minhas mãos

Há tantas mulheres no meu corpo
E tantas quantas todas são uma só
Ou nenhuma
Ou nenhuma
E é a mesma que caminha contra o vento
Em qualquer rua

ANTÓNIO RAMOS ROSA

(11/6/03)

Thursday, May 05, 2016

Era de noite quando eu bati à tua porta

























Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite ...
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me

Ana Hatherly