Thursday, September 29, 2016

A sombra da lua fui concebida rapaz e rapariga



A sombra da lua fui concebida rapaz e rapariga
mas quando nasci foi sacrificado Adão,
foi imolado aos vendedores da noite.
Minha mãe baptizou-me nas águas do mistério
para encher o vazio da minha outra essência, ...
colocou-me à beira de todos os abismos
e entregou-me ao estrondo das perguntas.
Dedicou-me à Eva das vertigens
e amassou-me em luz e trevas
para que me tornasse mulher centro e mulher lança
trespassada e gloriosa
anjo dos prazeres sem nome.

Estrangeira cresci e ninguém me colheu o trigo.
Desenhei a minha vida numa folha branca,
maçã que nenhuma árvore gerou,
mas depois rompi-a e saí dela
em parte vestida de vermelho, em parte branco.
Não habitei no tempo
nem estive fora dele
porque amadureci nas duas florestas.
Lembrei-me antes de nascer
que sou uma multidão de corpos
que dormi longamente
que longamente vivi
e quando me tornei fruto
conheci o que me esperava.
Pedi aos feiticeiros que cuidassem de mim
e levaram-me com eles.
Era
o meu riso
terno
a minha nudez
azul
e o meu pecado
tímido.
Voava numa pena de pássaro
e fazia-me travesseiro na hora do delírio.
Eles cobriram-me o corpo de amuletos
e untaram-me o coração com o mel da loucura.
Guardaram os meus tesouros e os ladrões dos meus tesouros
trouxeram-me silêncios e histórias
e prepararam-me para viver sem raízes.
E fui-me embora a partir daí.
Nas nuvens de cada noite reincarno
e viajo.
Só eu me despeço de mim
só eu me abro a porta.
O desejo é o meu caminho e a tempestade a bússola.
Em amor, em nenhum porto lanço ferro.
Abandono à noite a maior parte de mim mesma
e reencontro-me apaixonadamente.
Misturo fluxo e refluxo
vaga e areia da margem
abstinência da lua e os seus vícios
amor
e morte do amor.
De dia
o meu riso pertence aos outros
e é meu o meu jantar secreto.
Conhecem-me os que entendem o meu ritmo,
seguem-me
mas não me alcançam nunca.
Joumana Hadddad
(Tradução: Pedro Tamen- Laureano Silveira)

Saturday, September 10, 2016

com maldosa insistência


















Com maldosa insistência
Longamente se disse:
A mulher só pensa em vestir-se
(ou despir-se).
É um erro....
O que ela realmente quer é
Embalar
Embalar no corpo a alma.

A mulher não é
A campeã das gatas:
(não pode encolher as unhas)
Mas o seu arco-íris da invenção
Exige mais do que
Um tapete de peluche
Para o ron-ron.
Nada há mais exigente do que
A pertinência da análise
(a segunda facada, dizem,
dói sempre mais do que a primeira)
E se passar da sombra para a luz é difícil,
o contrário ainda é pior.

(Ana Hatherly)

Friday, September 09, 2016

eras o ar...



PARA AQUELA QUE MORREU
INEXPLICAVELMENTE PORQUE ERA AMADA

Chegaste e eras o ar. Agora sei
Que era já o ar o rosto que tiveste,
Pois no oráculo do vento decifrei
Que não és rosa nem ave nem cipreste.

Talvez que a tua aragem no meu braço
Seja o amor que agora eu mereça.
Mas se adormeço é sempre em teu regaço
Que os anjos me coroam a cabeça.

Talvez seja eu a morta. E tu ao lado
Não tenhas mão para me abrir a porta
Nem haja porta se te sinto ao lado.

Talvez não sejas tu nem eu nem nada
Enrolada no rasto desta estrela
Que me arrastou na sua queda errada.
(…)

Natália Correia

tu eras...












Tu eras também uma pequena folha que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube que ias comigo, até que as tuas raízes atravessaram o meu peito, se uniram aos fios do meu sangue, falaram pela minha boca, floresceram comigo.

Pablo Neruda

qual é nome

















Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
...
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.


Há cidades acesas cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.


E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.




SOPHIA DE MELLO BREYNER, Poesia, 1944