Sunday, December 26, 2004

Do nosso grande e mísero Destino




Voz Que Se Cala

Amo as pedras, os astros e o luar
Que beija as ervas do atalho escuro,
Amo as águas de anil e o doce olhar
Dos animais, divinamente puro.

Amo a hera que entende a voz do muro
E dos sapos, o brando tilintar
De cristais que se afagam devagar,
E da minha charneca o rosto duro.

Amo todos os sonhos que se calam
De corações que sentem e não falam,
Tudo o que é Infinito e pequenino!

Asa que nos protege a todos nós!
Soluço imenso, eterno, que é a voz
Do nosso grande e mísero Destino!...



Florbela Espanca

Tuesday, December 21, 2004

A VIAGEM E O DESTINO

Tente reconhecer que é um viajante divino. Está aqui apenas por pouco tempo, logo partindo para um mundo diferente e fascinante. Não limite o seu pensamento a uma breve vida e a um pequeno planeta. Lembre-se da vastidão do espírito que em si vive.


Yogananda

Saturday, December 18, 2004

Neste mundo vaidoso o amor é nada,

Vão orgulho

Neste mundo vaidoso o amor é nada,
É um orgulho a mais outra vaidade
A coroa de louros desfolhada
Com que se espera a eternidade.

Ser Beatiz, Natércia. Irrealidade!
Mentira...Engano de alma desvairada...
Onde está desses braços a verdade,
Essa fogueira em cinzas apagada?...

Mentira! Não te quis..não me quiseste...
Efluvios subtis de um bem celeste?
Gestos, palavras sem nenhum condão...

Mentira, não fui tua não...Somente
Quis ser mais do que sou, mais do que gente,
No alto do orgulho de o ter sido em vão



In Reliquiea
Florbela Espanca

Tuesday, December 14, 2004

A DEUSA ERA BRANCA...



A MULHER MUSA E A POESIA...

Assim que as formas poéticas começam a ser utilizadas por homossexuais e que o “amor platónico” (o idealismo homossexual) se introduz nos costumes, a deusa vinga-se. Sócrates, se bem nos lembramos, teria banido os poetas da sua lúgubre república. A alternativa consistindo a passar sem o amor da mulher é o ascetismo monástico; os resultados que daí advieram foram mais trágicos do que cómicos. No entanto a mulher não é poeta: ela é a Musa ou nada. Isto não quer dizer que uma mulher deveria abster-se de escrever poemas, e sim apenas que ela deveria escrever como mulher, e não como se fosse um homem.

O poeta era originalmente o Místico ou o Fiel em êxtase da Musa, as mulheres que participavam nos seus rituais eram suas representantes.
(...)

(...)
É verdade que a mulher, desde há algum tempo, se tornou o chefe virtual da casa em quase todo o Ocidente, ela agarrou os cordões à bolsa e pode aceder a qualquer carreira ou situação que lhe agrade; mas é pouco verossímil que ela venha a repudiar o sistema apesar da ordem patriarcal dominante. Apesar de todas as suas desvantagens, ela tem agora uma maior liberdade de acção que até o homem não conservou para si próprio; ainda que ela se aperceba intuitivamente que o sistema está maduro para uma mudança revolucionária, parece não se preocupar nem ter pressa para a obter. É-lhe mais fácil fazer o jogo do homem ainda mais um tempo até que a situação acabe por se tornar absurda e inconfortável tanto para uns como para outros se poderem entender.”(...)

in “A DEUSA BRANCA” - (1948) de Robert Graves

Sunday, December 12, 2004

QUEM FALA EM NÓS?

Mas o oráculo não fala sempre que se necessita dele, nem é entendido no que diz. E, além disso, quem está no oráculo?

Quem fala? A inspiração é um saber que põe em relevo a angústia que este mundo tem do outro: a angústia da descontinuidade, angústia dos múltiplos instantes separados entre si por abismos, de vazio e de silêncio.
(...)


Maria Zambrano

Eu colhi a tua flor, ó Mundo!

Cheguei-a muito ao meu coração: e o seu espinho feriu-me.
Quando o dia declinou, sombrio, a flor murchou: mas a dor ficou.
Muitas flores terás ainda, perfumadas e gloriosas, ó Mundo!
Mas para mim já passou a hora de colher flores. E já não tenho a minha rosa, na noite profunda que vem: tenho apenas a dor que ficou.


Tagore

[O fogo que derrete o véu]



Atenta para as sutilezas
que não se dão em palavras.
Compreende o que não se deixa
capturar pelo entendimento.

Dentro do coração empedernido do homem
arde o fogo que derrete o véu de cima abaixo.
Desfeito o véu,
o coração descobre as histórias do Hidr
e todo o saber que vem de nós.

A antiga história de amor
entre a alma e o coração
regressa sempre
em vestes renovadas.

Ao recitares "sol"
contempla o sol.
Sempre que recitares "não sou",
contempla a fonte do que és.

RUMI

Wednesday, December 08, 2004

O destino do coração

Os olhos foram feitos para ver coisas insólitas,
fez-se a alma para gozar da alegria e do prazer.
O coração foi destinado a embriagar-se
na beleza do amigo ou na aflição da ausência.

A meta do amor é voar até o firmamento,
a do intelecto, desvendar as leis e o mundo.

Para além das causas estão os mistérios, as maravilhas.

Os olhos ficarão cegos
quando virem que todas as coisas
são apenas meios para o saber.

O amante, difamado neste mundo
por uma centena de acusações,
receberá, no momento da união,
cem títulos e nomes.

Peregrinar nas areias do deserto
nos exige suportar
beber leite de camelo,
ser pilhados por beduínos.

Apaixonado, o peregrino beija a Pedra Negra
ansioso por sentir mais uma vez
o toque dos lábios do amigo
e degustar como antes o seu beijo.

Ó alma, não cunhes moedas com o ouro das palavras:
o buscador é aquele que vai
à própria mina de ouro.

RUMI

O SER DIVINO...


A ALMA E O AMOR

Alma e amor medem as distâncias do universo, transitam entre as diferentes espécies da realidade, alojam-se nelas e ligam-nas. Mas convém recordar que a alma e o amor existiram antes de ter havido “coisas”, antes de ter havido seres; são anteriores ao mundo dos ser. Ser Humano, adquirir existência humana, consiste na entrada da alma no ser, e com ela do amor. E esta entrada é padecer: padecer da alma que entra no recinto que parece hermético. Padece o ser também, porque nele entram às vezes várias almas em discórdia. Quem, ainda hoje, não sentiu a tortura de ter várias almas? Ou uma só que não entende?

(onde se lia homem transcrevi SER, a alma da escritora que me desculpe lá do céu onde me lê...)

In O HOMEM E O DIVINO – Maria Zambrano

Sunday, December 05, 2004

TUDO É SONHO

“Tudo isto é sonho e fantasmagoria, e pouco vale que o sonho seja lançamentos como prosa de bom porte. Que serve sonhar com princesas, mais que sonhar com a porta da entrada do escritório? Tudo que sabemos é uma impressão nossa, e tudo que somos é uma impressão alheia, melodrama de nós, que, sentindo-nos, nos constituímos nossos próprios espectadores activos, nossos deuses por licença da Câmara.”
F.P.

Coisas de nada íntimas a servir de mesa para o repouso do gesto incerto...

Tu não eras quem o sonho dizia nem foste depois o que prometias.

Ficaste entre os muros de tudo o que te aprisionava e as dúvidas que te afastaram de mim, a real família e os servos que te cantavam glorias de que tu não prescendias...
A forma como eras, disseste, rainha entre as concubinas na Corte de Almeriem–Mir

Entre tanta mulheres eras só mais uma que passava endelével na minha vida ou na paisagem agreste de uma deserto onde a tenda se erguia no meio de tempestades que uivavam e quando o negro teu escravo vinha e confessava que me traias... com outra concubina... e eu apenas ria...

Bebia vinho ácido e fumava ervas negras para afastar os espírítos que me atormantavam na tua ausência e escrevia versos trocados...tudo em mim se confundia e
ficava a olhar para as minhas serpentes para me treinar quando tu viesses mais uma vez com o teu veneno morder-me as entranhas e ria-me...
ria-me para dentro desta memória tão antiga que paira no meu espírito como uma fantasmagoria.

O Lado Obscuro de cada um de Nós


Passou no seu casamento por aquilo que é quase um facto universal - os indivíduos são diferentes uns dos outros. Basicamente, constituem um para o outro um enigma indecifrável. Nunca existe acordo total. Se cometeu algum erro, esse erro consistiu em ter-se esforçado demasiadamente por compreender totalmente a sua mulher e por não ter contado com o facto de, no fundo, as pessoas não quererem saber que segredos estão adormecidos na sua alma. Quando nos esforçamos demasiado por penetrar noutra pessoa, descobrimos que a impelimos para uma posição defensiva e que ela cria resistências porque, nos nossos esforços para penetrar e compreender, ela sente-se forçada a examinar aquelas coisas em si mesma que não desejava examinar. Toda a gente tem o seu lado obscuro que - desde que tudo corra bem - é preferível não conhecer.


in "O Lado Obscuro de cada um de Nós"
Jung, Carl
(Não resisti e roubei esta citação ao Citações, sempre geniail.)

Saturday, December 04, 2004

O CORAÇÃO FECHADO



"Tudo porque já não sou
o retrato adormecido
no fundo dos teus olhos!"

E.A.

fechou-se o coração

tantos transtornos

à tona de água
a máscara das palavras
quase náufragas

insisto

entre silêncios e sons a estrebuchar
devolvo ainda
(se bem que trémulo)
este meu olhar de amor
sobre o cenário

MARIANA INVERNO (n.1950)


in O POEMÁRIO DE MARIANA

Wednesday, December 01, 2004

NÃO SE POSSUI NINGUÉM

O amor de alguém é um presente tão inesperado e tão pouco merecido que devemos espantar-nos que não no-lo retirem mais cedo. Não estou inquieto por aqueles que ainda não conheces, ao encontro de quem vais e que porventura te esperam: aquele que eles vão conhecer será diferente daquele que eu julguei conhecer e creio amar. Não se possui ninguém (mesmo os que pecam não o conseguem) e, sendo a arte a única forma de posse verdadeira, o que importa é recriar um ser e não prendê-lo.

MARGUERITE YOURCENAR

TUDO COMEÇA DENTRO DE NÓS...



O governo do mundo começa em nós mesmos. Não são os sinceros que governam o mundo, mas também não são os insinceros. São os que fabricam em si uma sinceridade real por meios artificiais e automáticos; essa sinceridade constitui a sua força, e é ela que irradia para a sinceridade menos falsa dos outros. Saber iludir-se bem é a primeira qualidade do estadista. Só aos poetas e aos filósofos compete a visão prática do mundo, porque só a esses é dado não ter ilusões. Ver claro é não agir.

Fernando Pessoa,
O Livro do Desassossego


"SÓ TEM CONVICÇÕES AQUELE QUE NADA APROFUNDOU"
emile cioran