Saturday, July 04, 2009

Mãe, Eu Estou tão Cansado


Mãe, eu estou tão cansado e sinto nos ossos
o chamamento da água, o chamamento sibilino
que se confunde com o ranger das portas das casas
onde jamais voltarei: venha veloz o sono capaz
de me resgatar e que dentro dele se perfilem
as sombras e os gestos, exército dos meus medos
mais secretos, temores enrodilhados na roupa húmida
das camas. Mãe, a luz não se demora no meu quarto,
morre nas corolas das flores que trouxeste
para o riso não murchar, e eu fico doente só de olhar
os muros onde a hera é espiral de espanto, raiz
de uma enfermidade latente. Não voltarei
às actas do desespero, que são sombrias e magras
como os corpos dos amantes que definham sobre a
[areia
na fúria da maré, com uma gramática de murmúrios
escondida na solidão branca das dunas, mãe.

José Jorge Letria, in "Actas da Desordem do Dia"

NOTA:

Os três poemas que se seguem em baixo como sendo de autoria de wenceslau de moraes, tal como este, SÃO de josé jorge letria, tendo-lhes apenas sido dedicados pelo poeta.

Friday, July 03, 2009

NUNCA SOUBE O QUE É SER FELIZ


DEUSA ESQUIVA

Eu nunca proporcionei felicidade àqueles que amei
porque nunca soube o que é ser feliz.
Será, talvez, este adormecimento dos sentidos
que apaziguam em mim as dores ancestrais e ferinas,
que me põe no sono o bálsamo das noites sem temores.
A felicidade é uma deusa esquiva e tumultuosa
que mal se deixa tocar pelos dedos vacilantes
de quem a quer dominada e cativa.
Ela que tudo tem para dar, para partilhar,
outra coisa não faz senão recusar-me o consolo de uma concha de água
nas horas delirantes e ambravecidas da sede.
Nunca mais lhe dedicarei preces nem oferendas,
porque o meu tempo não serve para conjugar
os verbos em que ela se corporiza e ganha voz.

wenceslau de moraes

COMO EU GOSTAVA DE ME SENTIR POETA...

*
 
Como eu gostava de me sentir poeta
para condensar nos minúsculos utas
as minhas inquietações e medos.
Havia de me servir deles, minúcia artesã,
para cantar o meu amor aos animais,
aos cães, as aves e às galinhas anãs,
para exaltar a beleza do amr interior,
que deixa esta pátria adoptiva
cercada de água por dentro e por fora.
Havia de confessar neles a inveja que tenho
da coragem latejante dos samorais
e a minha cobardia ocidental
que me tolhe o gesto e a máquina da vontade
quando quero acabar com a cruz dos meus dias.

**
De longe chegam as notícias de catástrofes;
a terra tremeu na Martinica, na Formosa e em Nápoles,
e aqui é a minha alma doente que estremece e vibra
sob o impulso de um vulcão secreto
que mistura sofrimento com júbilo,
que confunde doença com saúde eterna.
Podia encomendar a minha alma magoada
a estes acolhedores deuses da casa
com quem é possível falar e num instante
se tornam cúmplices em nome da eternidade.
Mas que hei-de eu dizer-lhes que eles não saibam já?
eu sou uma alma estremecida e indefesa
à espera que um tremor real da terra
daqui me leve para onde moram as outras almas.

Wenceslau de Moraes

Tuesday, June 16, 2009

os tentáculos da escrita



a benção das estrelas...


A Montanha

"Calma, entre os ventos, em lufadas cheias
De um vago sussurrar de ladainha
Sacerdotisa em prece, o vulto alteias
Do vale, quando a noite se avizinha

Rezas sobre os desertos e as areias,
Sobre as florestas e a amplidão marinha,
E, ajoelhadas, rodeiam-te as aldeias.
Mudas servas aos pés de uma rainha.

Ardes, num holocausto de ternura...
E abres, piedosa, a solidão bravia
Para as águias e as nuvens, a acolhê-las;

E invades, como um sonho, a imensa altura,
- Última a receber o adeus do dia
Primeira a ter a bênção das estrelas"

Olavo Bilac

Sunday, April 26, 2009

Ausência


Ausência

Eu deixarei que morra
em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


VINICIUS DE MORAES 

terror de amar


Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa

*** 

Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa



Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas

Terror de te amar num sítio tão frágil como o mundo

Mal de te amar neste lugar de imperfeição
Onde tudo nos quebra e emudece
Onde tudo nos mente e nos separa



Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas
Sophia

o jardim e o vento passa


A hora da partida soa quando
Escurece o jardim e o vento passa,
Estala o chão e as portas batem, quando
A noite cada nó em si deslaça.

A hora da partida soa quando
as árvores parecem inspiradas
Como se tudo nelas germinasse.

Soa quando no fundo dos espelhos
Me é estranha e longínqua a minha face
E de mim se desprende a minha vida.


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Chamo-Te porque tudo está ainda no princípio
E suportar é o tempo mais comprido.

Peço-Te que venhas e me dês a liberdade,
Que um só dos teus olhares me purifique e acabe.

Há muitas coisas que eu quero ver.

Peço-Te que sejas o presente.
Peço-Te que inundes tudo.
E que o teu reino antes do tempo venha.
E se derrame sobre a Terra
Em primavera feroz pricipitado.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Sunday, April 19, 2009

Põe-me as Mãos nos Ombros...



Põe-me as mãos nos ombros...
Beija-me na fronte...
Minha vida é escombros,
A minha alma insonte.

Eu não sei por quê,
Meu desde onde venho,
Sou o ser que vê,
E vê tudo estranho.

Põe a tua mão
Sobre o meu cabelo...
Tudo é ilusão.
Sonhar é sabê-lo.


Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

Thursday, April 16, 2009

NÃO SEI DIZER...



"Nalgum lugar em que eu nunca estive, alegremente além
De qualquer experiência, teus olhos têm o seu silêncio:
No teu gesto mais frágil há coisas que me encerram,
Ou que eu não ouso tocar porque estão demasiado perto
Teu mais ligeiro olhar facilmente me descerra
Embora eu tenha me fechado como dedos, nalgum lugar
Me abres sempre pétala por pétala como a primavera abre
(tocando sutilmente, misteriosamente) a sua primeira rosa
Ou se quiseres me ver fechado, eu e
Minha vida nos fecharemos belamente, de repente
Assim como o coração desta flor imagina
A neve cuidadosamente descendo em toda a parte;
Nada que eu possa perceber neste universo iguala
O poder de tua intensa fragilidade: cuja textura
Compele-me com a cor de seus continentes,
Restituindo a morte e o sempre cada vez que respira
(não sei dizer o que há em ti que fecha
E abre; só uma parte de mim compreende que a
Voz dos teus olhos é mais profunda que todas as rosas)
Ninguém, nem mesmo a chuva, tem mãos tão pequenas"

Cummings

Sunday, February 22, 2009

Crepuscular




Há no ambiente um murmúrio de queixume,
De desejos de amor, d'ais comprimidos...
Uma ternura esparsa de balidos,
Sente-se esmorecer como um perfume.

As madressilvas murcham nos silvados
E o aroma que exalam pelo espaço,
Tem delíquios de gozo e de cansaço,
Nervosos, femininos, delicados.

Sentem-se espasmos, agonias d'ave,
Inapreensíveis, mínimas, serenas...
--- Tenho entre as mãos as tuas mãos pequenas,
O meu olhar no teu olhar suave.

As tuas mãos tão brancas d'anemia...
Os teus olhos tão meigos de tristeza...
--- É este enlanguescer da natureza,
Este vago sofrer do fim do dia.


Camilo Pessanha

Interrogação




Não sei se isto é amor. Procuro o teu olhar,
Se alguma dor me fere, em busca de um abrigo;
E apesar disso, crê! nunca pensei num lar
Onde fosses feliz, e eu feliz contigo.

Por ti nunca chorei nenhum ideal desfeito.
E nunca te escrevi nenhuns versos românticos.
Nem depois de acordar te procurei no leito
Como a esposa sensual do <>.

Se é amar-te não sei. Não sei se te idealizo
A tua cor sadia, o teu sorriso terno...
Mas sinto-me sorrir de ver esse sorriso
Que me penetra bem, como este sol de inverno.

Passo contigo a tarde e sempre sem receio
Da luz crepuscular, que enerva, que provoca.
Eu não demoro o olhar na curva do teu seio
Nem me lembrei jamais de te beijar na boca.

Eu não sei se é amor. Será talvez começo...
Eu não sei que mudança a minha alma pressente...
Amor não sei se o é, mas sei que te estremeço,
Que adoecia talvez de te saber doente.


Camilo Pessanha

Estátua


Cansei-me de tentar o teu segredo:
No teu olhar sem cor, --- frio escalpelo,
O meu olhar quebrei, a debatê-lo,
Como a onda na crista dum rochedo.

Segredo dessa alma e meu degredo
E minha obsessão! Para bebê-lo
Fui teu lábio oscular, num pesadelo,
Por noites de pavor, cheio de medo.

E o meu ósculo ardente, alucinado,
Esfriou sobre o mármore correcto
Desse entreaberto lábio gelado...

Desse lábio de mármore, discreto,
Severo como um túmulo fechado,
Sereno como um pélago quieto.


Camilo Pessanha

Saturday, February 07, 2009

CONHECER A DOR DA EXCESSIVA...



....

E não tentar guiar o curso do
amor; porque o Amor, se vos escolher, marcará
ele o vosso curso. O Amor não tem outro desejo
senão o de consumar-se.
Mas se amarem e tiverem desejos,
deverão ser estes:
fundir-se e ser um ribeiro corrente a cantar
a sua melodia à noite.
Conhecer a dor da excessiva ternura.
Ser ferido pela própria inteligência do Amor
e sangrar de bom grado e alegremente.
Acordar de manhã com o coração cheio
e agradecer outro dia de Amor. Descansar
ao meio dia e meditar no êxtase do Amor.
Voltar a casa ao crepúsculo e adormecer tendo no
coração uma prece pelo bem amado, e na boca
um canto de louvor.

(in Khalil Gibran, O Profeta)

Friday, January 16, 2009

A Alma da Dançarina


 

" Uma vez chegaram à corte do príncipe de Birkasha uma dançarina e os seus músicos. Tendo sido admitida na corte, ela dançou a música da flauta, do alaúde e da cítara. Executou a dança das chamas e do fogo e a dança das espadas e das lanças. Dançou as estrelas e o espaço e então, ela dançou a dança das flores ao vento. Quando terminou, aproximou-se do príncipe e curvou o corpo em reverência, diante dele. O príncipe ordenou que ela se aproximasse e perguntou-lhe: 
“Bela mulher, filha da graça e do encanto, de onde vem a sua arte e que poder é este o seu que domina todos os elementos nos seus ritmos e versos?” 
E a dançarina, aproximando-se, curvou mais uma vez o corpo em reverência e respondeu.
“Sua alteza, sereníssimo senhor, eu não sei a resposta para as suas perguntas. O que eu sei é apenas isto: que a alma do filósofo habita na sua mente, a alma do poeta habita no seu coração, a alma do cantor habita na sua garganta, mas a alma da dançarina habita todo o seu corpo.”

O viajante – Khalil Gibran

Saturday, January 10, 2009

O AMOR É UM PÁSSARO CEGO


Amo-te porque não me amo
inteiramente. O que me falta
é infinito
mas tu és do bem que me falta
o enigma onde se condensam
a terra e o sol o ar as águas
invioladas
e tenho a boca cheia
de música ondulação
do teu silêncio.
Entraste na casa do meu corpo,
desarrumaste as salas todas
e já não sei quem sou, onde estou.
O amor sabe. O amor é um pássaro cego
que nunca se perde no seu voo.


(...)
(excerto de poema de casimiro de brito)