Sunday, December 28, 2008

SONHEI TANTO A TUA FIGURA






Em todas as ruas te encontro
em todas as ruas te perco
conheço tão bem o teu corpo
sonhei tanto a tua figura
que é de olhos fechados que eu ando
a limitar a tua altura
e bebo a água e sorvo o ar
que te atravessou a cintura
tanto tão perto tão real
que o meu corpo se transfigura
e toca o seu próprio elemento
num corpo que já não é seu
num rio que desapareceu
onde um braço teu me procura

Mário Cesariny

Monday, December 22, 2008

Anjos, anjos...e rosas...


Que um dia havias de vir, não respirei
eu, de tanta meia-noite, por amor de ti,
tal inundação?
Porque esperava acalmar-te o rosto
com quase intactos esplendores,
se ele em infinita expectativa
um dia repousasse em frente ao meu.
Em silêncio fez-se espaço nos meus traços:
para bastar ao teu enorme olhar
meu sangue se fez espelho, aprofundou-se.

Se pela sebe pálida do olival
a noite em estrelas mais forte me excedia,
erguia-me direito e curvava-me
para trás e aprendia a reconhecer
o que mais tarde a ti nunca referia.

Oh! tal expressão em mim foi semeada
que, se o teu sorriso vier a acontecer,
pra ti transfiro, com o olhar, espaço de mundos.
Mas tu não vens, ou vens tarde demais.
Anjos, precipitai-vos sobre esse linhar
azul. Anjos, anjos, vinde ceifar.

Rainer Maria Rilke.

só quem vive







A Abelha que voando
A abelha que, voando, freme sobre
A colorida flor, e pousa, quase
Sem diferença dela
À vista que não olha,
Não mudou desde Cecrops.
Só quem vive
Uma vida com ser que se conhece
Envelhece, distinto
Da espécie de que vive.
Ela é a mesma que outra que não ela.
Só nós — ó tempo, ó alma, ó vida, ó morte!
—Mortalmente compramos
Ter mais vida que a vida.
*
Poemas de Ricardo Reis
(heterônimo de Fernando Pessoa)

Friday, December 12, 2008

ferida que me atravessa

(...)

ferida que me atravessa desde essa tua leveza
sombria como uma dança até
ao poder com que te toco. A mudança. Nenhuma
estação é lenta quando te acrescentas ne desordem,
nenhum
astro
é tão feroz agarrando toda a cama. Os poros
do teu vestido.


herberto helder

eu escrevo-te...


(...)


As palavras que escrevo correndo
entre a limalha. A tua boca como um buraco
luminoso,
arterial.
E o grande lugar anatómico em que pulsas como
um lençol lavrado.
A paixão é voraz, o silêncio
alimenta-se
fixamente de mel envenenado. E eu escrevo-te
toda
no cometa que te envolve as ancas como um beijo.
Os dias côncavos, os quartos alagados, as noites que
crescem
nos quartos.
É de ouro a paisagem que nasce: eu torço-a
entre os braços. E há roupas vivas, o imóvel
relâmpago das frutas. O incêndio atrás das noites corta
pelo meio
o abraço da nossa morte. Os fulcros das caras
um pouco loucas
engolfadas, entre as mãos sumptuosas.
A doçura mata.
A luz salta às golfadas.
A terra é alta.
Tu és o nó de sangue que me sufoca.
Dormes na minha insónia como o aroma entre os tendões
da madeira fria. És uma faca cravada na minha
vida secreta. E como estrelas
duplas
consanguíneas, luzimos de um para o outro
nas trevas


herberto helder - a carta da paixão - metade

NÃO POSSO ADIAR O CORAÇÃO


Não posso adiar o amor para outro século
não posso
ainda que o grito sufoque na garganta
ainda que o ódio estale e crepite e arda
sob as montanhas cinzentas
e montanhas cinzentas

Não posso adiar este braço
que é uma arma de dois gumes amor e ódio

Não posso adiar
ainda que a noite pese séculos sobre as costas
e a aurora indecisa demore
não posso adiar para outro século a minha vida
nem o meu amor
nem o meu grito de libertação

Não posso adiar o coração.

antónio ramos rosa

Sunday, December 07, 2008

Mãe, toma a minha dor

A ti, Mãe, primeira maravilha dada aos meus olhos, eu dedico estes poemas. Subida da tua carne, a minha luz pertence-te. Toma a minha dor e a minha alegria e este desespero que floresce à sombra do teu mistério.

Sou filha de marinheiros
pelo mar que também quis.
Pela linha da poesia
sou neta de D. Dinis.
Aquilo que nunca fiz
é a minha bastardia.

poesia para comer...




RETRATO TALVEZ SAUDOSO
DA MENINA INSULAR

Tinha o tamanho da praia
o corpo que era de areia.
E mais que corpo era indício
do mar que o continuava.
Destino de água salgada
principiado na veia.

E quando as mãos se estenderam
a todo o seu comprimento
e quando os olhos desceram
a toda a sua fundura
teve o sinal que anuncia
o sonho da criatura.

Largou o sonho no barco
que dos seus dedos partiam
que dos seus dedos paisagens
países antecediam.

E quando o corpo se ergueu
voltado para o desengano
só ficou tranquilidade
na linha daquele além
guardada na claridade
do coração que a retém.

In “Poemas”



A DEFESA DO POETA

Senhores juízes sou um poeta
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento
ao contrário do esqueleto.

Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.

Sou em código o azul de todos
(curtido couro de cicatrizes)
uma avaria cantante
na maquineta dos felizes.

Senhores banqueiros sois a cidade
o vosso enfarte serei
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.

Senhores professores que pusestes
a prémio minha rara edição
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.

Senhores tiranos que do baralho
de em pó volverdes sois os reis
sou um poeta jogo-me aos dados
ganho as paisagens que não vereis.

Senhores heróis até aos dentes
puro exercício de ninguém
minha cobardia é esperar-vos
umas estrofes mais além.

Senhores três quatro cinco e sete
que medo vos pôs por ordem?
que pavor fechou o leque
da vossa diferença enquanto homem?

Senhores juízes que não molhais
a pena na tinta da natureza
não apedrejeis meu pássaro
sem que ele cante minha defesa.

Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
a raiz quadrada da flor
que espalmais em apertos de mão.

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
a poesia é para comer.



Natália Correia
Auto-Retrato e Ultrabiográfico

insensata rosa


"Porque brota de mim, quando o corpo repousa e a alma fica a sós, esta insensata rosa?"


(Jorge Luís Borges)