Saturday, October 08, 2016

...do teu corpo



SAUDADE DO TEU CORPO

Tenho saudades do teu corpo: ouviste
correr-te toda a carne e toda a alma
o meu desejo – como um anjo triste
que enlaça nuvens pela noite calma?...

Anda a saudade do teu corpo (sentes?...)
Sempre comigo: deita-se ao meu lado,
dizendo e redizendo que não mentes
quando me escreves: « vem, meu todo amado...»

É o teu corpo em sombra esta saudade...
Beijo-lhe as mãos, os pés, os seios-sombra:
a luz do seu olhar é escuridade...

Fecho os olhos ao sol para estar contigo.
Eh de noite este corpo que me assombra...
Vês?! A saudade é um escultor antigo!


ANTÓNIO PATRÍCIO (1878-1930)

SAUDADE


SAUDADE IMENSA


Sinto de ti uma saudade imensa, maior que a
distância e o tempo, pois tempo ela não ousa,
espaço ela não vive. Sinto de ti uma saudade imensa.

De palavras no meio da noite, de conchas que ouviam
como ao mar, as vagas de meu pranto recolhidas,
do afago incessante nos meus sonhos,
um vento cálido que velava a alma,
acalentando o cansaço de meus dias.

Sinto de ti uma saudade imensa, longa como meus olhos
que se perdem, pois olhos ela não conhece,
e perda sempre foi. Sinto de ti uma saudade imensa...

De teus desejos e rimas, de palavras que sorriam
como o sol na madrugada em mim.
E a lua-rede aos nossos corpos
mais que escritos em nós mesmos.

Sinto de ti uma saudade imensa... e penso: não existe onde...
o quando é infinito. Neste espaço lento da demora,
pergunto ao sonho de um ainda: quem, neste vazio tão triste,
soprou o sempre e apagou o horizonte?


Lília Chaves 

Thursday, September 29, 2016

A sombra da lua fui concebida rapaz e rapariga



A sombra da lua fui concebida rapaz e rapariga
mas quando nasci foi sacrificado Adão,
foi imolado aos vendedores da noite.
Minha mãe baptizou-me nas águas do mistério
para encher o vazio da minha outra essência, ...
colocou-me à beira de todos os abismos
e entregou-me ao estrondo das perguntas.
Dedicou-me à Eva das vertigens
e amassou-me em luz e trevas
para que me tornasse mulher centro e mulher lança
trespassada e gloriosa
anjo dos prazeres sem nome.

Estrangeira cresci e ninguém me colheu o trigo.
Desenhei a minha vida numa folha branca,
maçã que nenhuma árvore gerou,
mas depois rompi-a e saí dela
em parte vestida de vermelho, em parte branco.
Não habitei no tempo
nem estive fora dele
porque amadureci nas duas florestas.
Lembrei-me antes de nascer
que sou uma multidão de corpos
que dormi longamente
que longamente vivi
e quando me tornei fruto
conheci o que me esperava.
Pedi aos feiticeiros que cuidassem de mim
e levaram-me com eles.
Era
o meu riso
terno
a minha nudez
azul
e o meu pecado
tímido.
Voava numa pena de pássaro
e fazia-me travesseiro na hora do delírio.
Eles cobriram-me o corpo de amuletos
e untaram-me o coração com o mel da loucura.
Guardaram os meus tesouros e os ladrões dos meus tesouros
trouxeram-me silêncios e histórias
e prepararam-me para viver sem raízes.
E fui-me embora a partir daí.
Nas nuvens de cada noite reincarno
e viajo.
Só eu me despeço de mim
só eu me abro a porta.
O desejo é o meu caminho e a tempestade a bússola.
Em amor, em nenhum porto lanço ferro.
Abandono à noite a maior parte de mim mesma
e reencontro-me apaixonadamente.
Misturo fluxo e refluxo
vaga e areia da margem
abstinência da lua e os seus vícios
amor
e morte do amor.
De dia
o meu riso pertence aos outros
e é meu o meu jantar secreto.
Conhecem-me os que entendem o meu ritmo,
seguem-me
mas não me alcançam nunca.
Joumana Hadddad
(Tradução: Pedro Tamen- Laureano Silveira)

Saturday, September 10, 2016

com maldosa insistência


















Com maldosa insistência
Longamente se disse:
A mulher só pensa em vestir-se
(ou despir-se).
É um erro....
O que ela realmente quer é
Embalar
Embalar no corpo a alma.

A mulher não é
A campeã das gatas:
(não pode encolher as unhas)
Mas o seu arco-íris da invenção
Exige mais do que
Um tapete de peluche
Para o ron-ron.
Nada há mais exigente do que
A pertinência da análise
(a segunda facada, dizem,
dói sempre mais do que a primeira)
E se passar da sombra para a luz é difícil,
o contrário ainda é pior.

(Ana Hatherly)

Friday, September 09, 2016

eras o ar...



PARA AQUELA QUE MORREU
INEXPLICAVELMENTE PORQUE ERA AMADA

Chegaste e eras o ar. Agora sei
Que era já o ar o rosto que tiveste,
Pois no oráculo do vento decifrei
Que não és rosa nem ave nem cipreste.

Talvez que a tua aragem no meu braço
Seja o amor que agora eu mereça.
Mas se adormeço é sempre em teu regaço
Que os anjos me coroam a cabeça.

Talvez seja eu a morta. E tu ao lado
Não tenhas mão para me abrir a porta
Nem haja porta se te sinto ao lado.

Talvez não sejas tu nem eu nem nada
Enrolada no rasto desta estrela
Que me arrastou na sua queda errada.
(…)

Natália Correia

tu eras...












Tu eras também uma pequena folha que tremia no meu peito.
O vento da vida pôs-te ali.
A princípio não te vi: não soube que ias comigo, até que as tuas raízes atravessaram o meu peito, se uniram aos fios do meu sangue, falaram pela minha boca, floresceram comigo.

Pablo Neruda

qual é nome

















Há cidades acesas na distância,
Magnéticas e fundas como luas,
...
Descampados em flor e negras ruas
Cheias de exaltação e ressonância.


Há cidades acesas cujo lume
Destrói a insegurança dos meus passos,
E o anjo do real abre os seus braços
Em nardos que me matam de perfume.


E eu tenho de partir para saber
Quem sou, para saber qual é o nome
Do profundo existir que me consome
Neste país de névoa e de não ser.




SOPHIA DE MELLO BREYNER, Poesia, 1944

Monday, June 13, 2016

Como Te Amo




Como te amo? Não sei de quantos modos vários
Eu te adoro, mulher de olhos azuis e castos;
Amo-te com o fervor dos meus sentidos gastos; ...
Amo-te com o fervor dos meus preitos diários.

É puro o meu amor, como os puros sacrários;
É nobre o meu amor, como os mais nobres fastos;
É grande como os mares altisonos e vastos;
É suave como o odor de lírios solitários.
Amor que rompe enfim os laços crus do Ser;
Um tão singelo amor, que aumenta na ventura;
Um amor tão leal que aumenta no sofrer;
Amor de tal feição que se na vida escura
É tão grande e nas mais vis ânsias do viver,
Muito maior será na paz da sepultura!


Fernando Pessoa,


"Inéditos – Poemas de Lança-Pessoa – Manuscrito (Junho/1902)"

Friday, June 10, 2016

HÁ CIDADES COR DE PÉROLA ONDE AS MULHERES



Há cidades cor de pérola onde as mulheres
existem velozmente. Onde
às vezes param, e são morosas
por dentro. Há cidades absolutas,...
trabalhadas interiormente pelo pensamento
das mulheres.
Lugares límpidos e depois nocturnos,
vistos ao alto como um fogo antigo,
ou como um fogo juvenil.
Vistos fixamente abaixados nas águas
celestes.
Há lugares de um esplendor virgem,
com mulheres puras cujas mãos
estremecem. Mulheres que imaginam
num supremo silêncio, elevando-se
sobre as pancadas da minha arte interior.
Há cidades esquecidas pelas semanas fora.
Emoções onde vivo sem orelhas
nem dedos. Onde consumo
uma amizade bárbara. Um amor
levitante. Zona
que se refere aos meus dons desconhecidos.
Há fervorosas e leves cidades sob os arcos
pensadores. Para que algumas mulheres
sejam cândidas. Para que alguém
bata em mim no alto da noite e me diga
o terror de semanas desaparecidas.
Eu durmo no ar dessas cidades femininas
cujos espinhos e sangues me inspiram
o fundo da vida.
Nelas queimo o mês que me pertence.
A minha loucura, escada
sobre escada.
Mulheres que eu amo com um desespero
fulminante, a quem beijo os pés
supostos entre pensamento e movimento.
Cujo nome belo e sufocante digo com terror,
com alegria. Em que toco levemente
a boca brutal.
Há mulheres que colocam cidades doces
e formidáveis no espaço, dentro
de ténues pérolas.
Que racham a luz de alto a baixo
e criam uma insondável ilusão.
Dentro de minha idade, desde
a treva, de crime em crime - espero
a felicidade de loucas delicadas
mulheres.
Uma cidade voltada para dentro
do génio, aberta como uma boca
em cima do som.
Com estrelas secas.
Parada.
Subo as mulheres aos degraus.
Seus pedregulhos perante Deus.
É a vida futura tocando o sangue
de um amargo delírio.
Olho de cima a beleza genial
de sua cabeça
ardente: - E as altas cidades desenvolvem-se
no meu pensamento quente.
Herberto Helder

Sunday, May 22, 2016

Saberás que não te amo





















Saberás que não te amo e que te amo,
pois que de dois modos é a vida,
a palavra é uma asa do silêncio,
o fogo tem a sua metade de frio.
Amo-te para começar a
... amar-te,
para recomeçar o infinito
e para não deixar de amar-te nunca:
por isso não te amo ainda.
Amo-te e não te amo como se tivesse
nas minhas mãos a chave da felicidade
e um incerto destino infeliz.
O meu amor tem duas vidas para amar-te.
Por isso te amo quando não te amo
e por isso te amo quando te amo.




Pablo Neruda,

Prémio Nobel da Literatura de 1971.

esse segredo

























Quem te disse ao ouvido esse segredo
Que raras deusas têm escutado —
Aquele amor cheio de crença e medo ...
Que é verdadeiro só se é segredado?...
Quem te disse tão cedo?

 
Não fui eu, que te não ousei dizê-lo.
Não foi um outro, porque não sabia.
Mas quem roçou da testa teu cabelo
E te disse ao ouvido o que sentia?
Seria alguém, seria?

Ou foi só que o sonhaste e eu te o sonhei?
Foi só qualquer ciúme meu de ti
Que o supôs dito, porque o não direi,
Que o supôs feito, porque o só fingi
Em sonhos que nem sei?

Seja o que for, quem foi que levemente,
A teu ouvido vagamente atento,
Te falou desse amor em mim presente
Mas que não passa do meu pensamento
Que anseia e que não sente?

Foi um desejo que, sem corpo ou boca,
A teus ouvidos de eu sonhar-te disse
A frase eterna, imerecida e louca —
A que as deusas esperam da ledice
Com que o Olimpo se apouca.

Fernando Pessoa, in "Cancioneiro"

( Madonna of the Magnificat Detail of the Virgin’s face,1482 -By Sandro Botticelli in the Uffizi, Florence, Italy )

Friday, May 13, 2016

Há uma mulher de música


“NA MINHA POESIA HÁ UMA BUSCA DA MINHA IDENTIDADE
PORQUE EU MESMO NÃO ME CONHEÇO.”

A. Ramos Rosa

INÉDITO

Há uma mulher na minha solidão sem lábios
Que não sei se é azul ou verde
Que se apaga talvez no horizonte
Há uma mulher talvez na palavra solidão
Que nunca se destingue da palavra
Porque é a palavra mesma que não se diz
Porque é a solidão que não é ela

Há uma mulher nos confins da minha ausência
Como uma sombra da minha ausência
Como uma ausência da mesma sombra

Há uma mulher nos lábios da minha solidão
Que nunca chega a ser pronunciada
Ou é o ar de uma sede que não respiro
Ou o nada mesmo de todo a solidão

Há uma mulher de musgo nas minhas pálpebras
E outra que se esconde nos olhos e é a mesma
Há uma mulher de música
No meu sorriso
Há uma mulher de tristeza como o tempo
Na água das minhas mãos

Há tantas mulheres no meu corpo
E tantas quantas todas são uma só
Ou nenhuma
Ou nenhuma
E é a mesma que caminha contra o vento
Em qualquer rua

ANTÓNIO RAMOS ROSA

(11/6/03)

Thursday, May 05, 2016

Era de noite quando eu bati à tua porta

























Príncipe:
Era de noite quando eu bati à tua porta
e na escuridão da tua casa tu vieste abrir
e não me conheceste.
Era de noite ...
são mil e umas
as noites em que bato à tua porta
e tu vens abrir
e não me reconheces
porque eu jamais bato à tua porta.
Contudo
quando eu batia à tua porta
e tu vieste abrir
os teus olhos de repente
viram-me
pela primeira vez
como sempre de cada vez é a primeira
a derradeira
instância do momento de eu surgir
e tu veres-me.
Era de noite quando eu bati à tua porta
e tu vieste abrir
e viste-me
como um náufrago sussurrando qualquer coisa
que ninguém compreendeu.
Mas era de noite
e por isso
tu soubeste que era eu
e vieste abrir-te
na escuridão da tua casa.
Ah era de noite
e de súbito tudo era apenas
lábios pálpebras intumescências
cobrindo o corpo de flutuantes volteios
de palpitações trémulas adejando pelo rosto.
Beijava os teus olhos por dentro
beijava os teus olhos pensados
beijava-te pensando
e estendia a mão sobre o meu pensamento
corria para ti
minha praia jamais alcançada
impossibilidade desejada
de apenas poder pensar-te.
São mil e umas
as noites em que não bato à tua porta
e vens abrir-me

Ana Hatherly

Sunday, April 24, 2016

A ROSA DUBIA



ABANDONO


És o abandono límpido e sobre ti me inclino,
porque o amor é uma inflorescência indizível,
sobre galáxias de alfazema....
Perscruto-te numa errância obscura;
e procuro todas as metáforas em que te possa
transformar,
mas apenas as linhas se insinuam
e as sombras espalham-se na tua avidez porosa.
O vento é a tua imagem e o ar, com a sua cabeleira
volúvel, fascina-me,
tal como o teu rosto de olhos insones,
perdido entre a lua, o sol e a terra,
em seu pulsar vigoroso.
Afasto a neblina inerte e perco-me em ti,
porque os teus olhos são tâmaras azuis,
labirintos de música,
e o mar é uma explosão exótica que vibra,
galgado o corpo e as suas margens.
A totalidade é a chave que te inventa.
És a Primavera de espaços sucessivos, a rosa dúbia,
a sombra incandescente desses lugares
que emergem,
íris e caos, pedra volúvel, navio versátil.
Na vertigem exímia, perco-me nas tuas torrentes
de magma.
No teu rosto salgado, encontro o laço da volúpia,
o corpo das brisas, as poalhas de veludo,
as algas movediças
e um terror subterrâneo, fonte intranquila,
colmeia dulcíssima, vaga flutuando
num vazio errante de céu e nenúfares.

Thursday, April 21, 2016



Coreografia

No palco da noite bailado de corpos
Cenário de sombras...
esculpidas em nu

Tu danças as mãos
inscreves contornos
na minha nudez
Eu sou dimensão
que dança em teu espaço
Não temos cansaço
Só temos volúpia
Desejo
Harmonia
Vontade de luta
Ao longo de ti descubro caminhos. Trajecto de boca
E danço contigo
E esqueço a memória
Eu sou o teu sangue
A mesma saliva
O mesmo suor
Nós somos a mesma
Mulher-Repetida.

Manuela Amaral

Friday, April 08, 2016




Beijo o degrau e o espaço. O meu desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos, ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei contigo


fragmento de poema
Herberto helder