Monday, October 31, 2005

Encontro





Quisera fosse um suspiro
que me seduzisse
inteira.

Algo sussurrado
aos ouvidos
que me fizesse
prisioneira.

Quisera mãos
me afagassem
a procura do outro
ser que há em
mim:
pele, pêlos, penugem,
a tua boca
na minha boca
a tua língua a deslizar
como uma serpente
entre meus dentes.

Suor, a transpirar
pelos poros,
pernas a entrelaçar
meu corpo,
olhos entreabertos.

Narinas aguçadas
a captar odores
daqueles seres que
se abraçam
daquele monte de carne,
objeto tridimensional
esculturas móveis
sal e beleza
e a sensualidade,
geografia obscena.

Obscenas também
nossas cabeças
que vão da fantasia
transformando
signos em matérias,
palavras soltas,
desejos que irrompem,
murmúrios,
lambidos.

Um grito transborda.

O infinito...



Angela Schaun

Dilema do adeus



Quero dizer-te adeus
e não encontro palavra
para dizer-te adeus.

Simplesmente adeus
não traduz o que sinto
por fora e por dentro
ao dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
e não encontro sentido
para dizer-te adeus.

Certamente adeus
não arranca de mim
a vontade de ficar
para dizer-te um adeus-sem-fim.

Quero dizer-te adeus
e dissolver todas as lembranças
e apagar a esperança
de rever um dia depois do adeus.

Quero dizer-te adeus
e não encontro coragem
para dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
para que o tempo passe
as rugas e as pedras apareçam
e ainda assim dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
e não encontro caminho
para dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
e mansamente sumir na estrada
assim calada, no silêncio profundo
ao dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
e não encontro o tempo certo
para dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
na monotonia das palavras vãs,
na agonia da consciência cristã
que só permite dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
e poder ser a mesma
depois do adeus.

Quero dizer-te adeus
e sair incólume
desse encontro inesperado
e ter a certeza de dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
e continuar como antes,
antes e depois de dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
na busca frenética de mil adeuses
na cena erótica de um quarto vazio
para conseguir dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
tantas e quantas vezes for preciso
pois só assim me conscientizo
de que é preciso dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
no anoitecer de um dia claro
no afã de um beijo desesperado
e encontrar força para dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
na transparência das minhas lágrimas
e no mesmo instante afogar-me em mágoas
para poder dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
na busca do absurdo
do acaso surdo e mudo
daquele encontro que tornou-se adeus.

Quero dizer-te adeus
quantas vezes eu já nem sei
quantas noite eu vaguei
na busca infinita de dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
pelos motivos que já sabemos
porém não cremos
por isso tão difícil dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
e interromper este dilema
deixar mudo este poema
e silenciar este adeus.

Quero dizer-te adeus
no afã de um suspiro profundo
no elã de um olhar fecundo
e pronunciar docemente o adeus.

Quero dizer-te adeus
nas entrelinhas de uma poesia obscena,
no jogar pelo chão esta paixa terrena
sair correndo e dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
como um raio que fulmina,
como uma bebida que alucina,
bruscamente, dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
e poder cair no esquecimento
pois não pensarei no tormento
quero simplesmente dizer-te adeus.

Quero dizer-te adeus
na rapidez de um trem veloz,
não quero que ouças a minha voz,
quando gritar finalmente,
ADEUS


Angela Schaun
Este poemeto, no modo mulher, é uma variante
(e homenagem) do poema Lembranças,
de Angela Schaun

Não lavei os seios
pois tinham o calor
da tua mão.
Não lavei as mãos
pois tinham os sons
do teu corpo.
Não lavei o corpo
pois tinha os rastros
dos teus gestos;
tinha também, o meu corpo,
a sagrada profanação
do teu olhar
que não lavei.
Nem aqueles lençóis,
não os lavei,
nem os espelhos,
que continuam
onde sempre estiveram:
porque eles nos viram
cúmplices, e a paixão,
no paraíso,
parece que era.
Lavei, sim,
lavei e perfumei
a alma, em jasmim,
que é tua, só tua,
para te esperar
como se nunca tivesses ido
a nenhum lugar:
donde apaguei
todas as ausências
que apaguei
ao teu olhar.


Soares feitosa
Salvador, madrugada alta, 6.10.95

Motivo da rosa





Não te aflijas com a pétala que voa:
também é ser, deixar de ser assim.


Rosas verá, só de cinzas franzida,
mortas, intactas pelo teu jardim.


Eu deixo aroma até nos meus espinhos
ao longe, o vento vai falando de mim.


E por perder-me é que vão me lembrando,
por desfolhar-me é que não tenho fim.



Timidez

Basta-me um pequeno gesto,
feito de longe e de leve,
para que venhas comigo
e eu para sempre te leve...


— mas só esse eu não farei.


Uma palavra caída
das montanhas dos instantes
desmancha todos os mares
e une as terras mais distantes...


— palavra que não direi.


Para que tu me adivinhes,
entre os ventos taciturnos,
apago meus pensamentos,
ponho vestidos noturnos,


— que amargamente inventei.


E, enquanto não me descobres,
os mundos vão navegando
nos ares certos do tempo,
até não se sabe quando...


— e um dia me acabarei.

Tuesday, October 25, 2005

O homem deseja e odeia a verdade


O homem deseja e odeia a verdade. Quer mentir aos outros - quer que o enganem (prefere a ficção à realidade), mas por outro lado receia o engano, quer o fundo das coisas, o verdadeiro verdadeiro, etc.
Somente a razão conduz à verdade. Mas só os fanáticos, os visionários e os iluminados fazem as coisas grandiosas, mudanças, descobertas. A verdade, de tanto se tornar necessária, conduz à secura, à dúvida, à inércia - à morte.
É muito natural que os homens odeiem aqueles que dizem ou tentam dizer a verdade. A verdade é triste (dizia Renan) - mas, com maior frequência, é horrível, temível, anti-social. Destrói as ilusões, os afectos. Os homens defendem-se como podem. Isto é, defendem a sua pequena vida, apenas suportável à força de compromissos, de embustes, de ficções, etc. Não querem sofrer, não querem ser heróis. Rejeição do heroísmo-mentira.


Giovanni Papini,
in 'Relatório Sobre os Homens'

Viver não dói

Definitivo, como tudo o que é simples.
Nossa dor não advém das coisas vividas,
mas das coisas que foram sonhadas
e não se cumpriram.
Por que sofremos tanto por amor?
O certo seria a gente não sofrer,
apenas agradecer por termos conhecido
uma pessoa tão bacana,
que gerou em nós um sentimento intenso
e que nos fez companhia por um tempo razoável,
um tempo feliz.
Sofremos por quê?
Porque automaticamente esquecemos
o que foi desfrutado e passamos a sofrer
pelas nossas projeções irrealizadas,
por todas as cidades que gostaríamos
de ter conhecido ao lado do nosso amor
e não conhecemos,
por todos os filhos que
gostaríamos de ter tido junto e não tivemos,
por todos os shows e livros e silêncios
que gostaríamos de ter compartilhado,
e não compartilhamos.
Por todos os beijos cancelados,
pela eternidade.
Sofremos não porque
nosso trabalho é desgastante e paga pouco,
mas por todas as horas livres
que deixamos de ter para ir ao cinema,
para conversar com um amigo,
para nadar, para namorar.
Sofremos não porque nossa mãe
é impaciente conosco,
mas por todos os momentos em que
poderíamos estar confidenciando a ela
nossas mais profundas angústias
se ela estivesse interessada
em nos compreender.
Sofremos não porque nosso time perdeu,
mas pela euforia sufocada.
Sofremos não porque envelhecemos,
mas porque o futuro está sendo
confiscado de nós,
impedindo assim que mil aventuras
nos aconteçam,
todas aquelas com as quais sonhamos e
nunca chegamos a experimentar.
Como aliviar a dor do que não foi vivido?
A resposta é simples como um verso:
Se iludindo menos e vivendo mais!!!
A cada dia que vivo,
mais me convenço de que o
desperdício da vida
está no amor que não damos,
nas forças que não usamos,
na prudência egoísta que nada arrisca,
e que, esquivando-se do sofrimento,
perdemos também a felicidade.
A dor é inevitável.
O sofrimento é opcional.


Carlos Drummond de Andrade

Friday, October 21, 2005

MARÂNUS


(...)
"Neste íntimo deserto que se estende
Sempre através de mim, apenas vejo
Um delicado vulto de mulher;
Sombra bela e gentil do meu desejo
Indefinido e vago...aparição
Desta melancolia fraternal,
Que me surgiu, à flor do coração;
E beijando, amorosa, as minhas lágrimas,
Dentro delas, espalha o azul do dia..."

(...)
Teixeira de Pascoais

O meu desejo


Vejo-te só a ti no azul dos céus,
Olhando a nuvem de oiro que flutua...
Ó minha perfeição que criou Deu
E que num dia lindo me fez sua!

Nos vultos que diviso pela rua,
Que cruzam os seus passos com os meus...
Minha boca tem fome só da tua!
Meus olhos têm sede só dos teus!

Sombra da tua sombra, doce e calma,
Sou a grande quimera da tua alma
E, sem viver, ando a viver contigo...

Deixa-me andar assim no teu caminho
Por toda a vida, Amor, devagarinho,
Até a morte me levar consigo...


FLORBELA ESPANCA (1894-1930)

Wednesday, October 19, 2005

Sei que amo, mas não sei a quem...





Sei que amo,
mas não sei a quem...
Sei que adoro,
mas não sei quem adoro!
Sei que rezo, choro e peço,
mas não sei a quem ao certo...

Existe alguém,
algures no firmamento
Ou nos confins de um qualquer outro mundo,
No céu ou no inferno,
no centro de terra...
que eu amo
sem que consiga saber,
adivinhar ou descortinar quem
e que a minha razão não compreende ...

Que segredo é este que a minha alma guarda,
que excede o meu coração,
o meu entendimento prende,
e me faz sentir a mim numa prisão?
Amar tanto um ser que sempre procurei,
mas nem sequer se existe sei...







Parece uma dor, um amor, alguém que conheço...

Algo me chama na minha alma,
me esmaga por dentro e faz doer...
bate no meu peito pancadas surdas de violento desespero...

Quem me ama ou amo eu e não sei quem é?
Porque não fala, não responde ou não tem voz?
Ó alma amada, diz-me onde estás...

Se eu pudesse, iria ter contigo mesmo sem asas...
Ao mais alto céu, ao mais fundo dos abismos,
ao centro da terra, no meio das trevas,

Iria ao inferno buscar-te!
ao fundo do mar...

Ó amor se não tens corpo,
escolhe um anjo, pede um guia,
um antepassado, um Orixá...
que desça o santo!
Que venha Oxum, Jemanjá!

Mas diz-me peço-te, onde estás...


rosa leonor pedro
in ANTES DO VERBO ERA O ÚTERO

Abre tus sentidos

Abre tus sentidos,
dispónlos para cada gesto.

Arráigate en la luz
que inaugura los colores.

Ansía el gozo
de las palabras heredadas,
de los libros que te esperan,
de la música límpida
de quienes te preceden.

Alégrate de la fruta,
de los labios que acogen tu beso,
del mar inalcanzable,
del Dios indescifrable.

Instaura en tus ojos
el eco azul del infinito.


CARLES DUARTE
(Poeta catalão)

Tuesday, October 18, 2005

Seios



Sei os teus seios.
Sei-os de cor.
Para a frente, para cima,
Despontam, alegres, os teus seios.
Vitoriosos já,
Mas não ainda triunfais.
Quem comparou os seios que são teus
(Banal imagem) a colinas!
Com donaire avançam os teus seios,
Ó minha embarcação!
Por que não há
Padarias que em vez de pão nos dêem seios
Logo p´la manhã?
Quantas vezes
Interrogaste, ao espelho, os seios?
Tão tolos os teus seios! Toda a noite
Com inveja um do outro, toda a santa
Noite!
Quantos seios ficaram por amar?
Seios pasmados, seios lorpas, seios
Como barrigas de glutões!
Seios decrépitos e no entanto belos
Como o que já viveu e fez viver!
Seios inacessíveis e tão altos
Como um orgulho que há-de rebentar
Em desesperadas, quarentonas lágrimas...
Seios fortes como os da Liberdade
- Delacroix - guiando o povo.
Seios que vão à escola p´ra de lá saírem
Direitinhos p´ra casa...
Seios que deram o bom leite da vida
A vorazes folhos alheios!
Diz-se rijo dum seio que, vencido,
Acaba por vencer...
O amor excessivo dum poeta:
«E hei-de mandar fazer um almanaque
Na pele encadernado do teu seio!» (Gomes Leal)
Retirar-me para uns seios que me esperam
Há tantos anos, fielmente, na província!
Arrulho de pequenos seios
No peitoril de uma janela
Aberta sobre a vida.
Botas, botifarras
Pisando tudo, até os seios
Em que o amor se exalta e robustece!
Seios adivinhados, entrevistos,
Jamais possuídos, sempre desejados!
«Oculta, pois, oculta esses objectos,
Altares onde fazem sacrifícios
Quantos os vêem com olhos indiscretos» (Abade de Jazente)
Raparigas dos limões a oferecerem
Fruta mais atrevida: inesperados seios...
Uma roda de velhos seios despeitados,
Rabujando,
A pretexto de chá...
Engolfo-me num seio até perder
Memória de quem sou...
Quantos seios devorou a guerra, quantos,
Depressa ou devagar, roubou à vida,
À alegria, ao amor e às gulosas
Bocas dos miúdos!
Pouso a cabeça no teu seio
E nenhum desejo me estremece a carne
Vejo os teus seios, absortos
Sobre um pequeno ser.


Alexandre O'Neill

Monday, October 10, 2005

Meu coração, coisa de aço

Ando à procura de espaço
para o desenho da vida.
Em números me embaraço
e perco sempre a medida.
Se penso encontrar saída,
em vez de abrir um compasso,
protejo-te num abraço
e gero uma despedida.

Se volto sobre o meu passo,
é já distância perdida.

Meu coração, coisa de aço,
começa a achar um cansaço
esta procura de espaço
para o desenho da vida.
Já por exausta e descrida
não me animo a um breve traço:
- saudosa do que não faço,
- do que faço, arrependida.


Cecília meireles

Sunday, October 09, 2005

La Luxure est une force

Muitas vezes alteramos a Verdade,
mas só para dar a máxima expressão de verdade
á nossa fantasia.

Judith de Teixeira



Predestinada

Sou amargura em recorte
numa sombra diluida...
Vivo tão perto da morte!
Ando tão longe da vida...

Quis vencer a minha sorte,
Mas fui eu que fui vencida!
Ando na vida sem norte,
Já nem sei da minha vida...

Eu sou a alma penada
de outra que foi desgraçada!
—A tara da desventura...

Sou u Castigo fatal
dum negro crime ancestral,
en convulsões de loucura!



A minha amante

Dizem que eu tenho amores contigo!
Deixa-os dizer!…
Eles sabem lá o que há de sublime
Nos meus sonhos de prazer…
De madrugada, logo ao despertar,
Há quem me tenha ouvido gritar
Pelo teu nome…

Dizem —e eu não protesto—
Que seja qual for
o meu aspecto
tu estás
na minha fisionomia
e no meu gesto!

Dizem que eu me embriago toda em cores
Para te esquecer…
E que de noite pelos corredores
Quando vou passando para te ir buscar,
Levo risos de louca, no olhar!

Não entendem dos meus amores contigo—
Não entendem deste luar de beijos…
—Há quem lhe chame a tara perversa,
Dum ser destrambelhado e sensual!
Chamam-te o génio do mal—
O meu castigo…
E eu em sombras alheio-me dispersa…

E ninguém sabe que é de ti que eu vivo…
Que és tu que doiras ainda,
O meu castelo em ruína…
Que fazes da hora má, a hora linda
Dos meus sonhos voluptuosos—
Não faltes aos meus apelos dolorosos
—Adormenta esta dor que me domina!



(Judith Teixeira. Poemas. Lisboa. Edicições Culturais do Subterráneo. 1996.)

Wednesday, October 05, 2005

Nunca são as coisas mais simples...

"Nunca são as coisas mais simples que aparecem
quando as esperamos. O que é mais simples,
como o amor, ou o mais evidente dos sorrisos, não se
encontra no curso previsível da vida. Porém, se
nos distraímos do calendário, ou se o acaso dos passos
nos empurrou para fora do caminho habitual,
então as coisas são outras. Nada do que se espera
transforma o que somos se não for isso:
um desvio no olhar; ou a mão que se demora
no teu ombro, forçando uma aproximação
dos lábios."


Nuno Júdice

CAMPO DE FLORES

Deus me deu um amor no tempo de madureza,
quando os frutos ou não são colhidos ou sabem a verme.
Deus - ou foi talvez o Diabo - deu-me este amor maduro,
e a um e outro agradeço, pois que tenho um amor.
Pois que tenho um amor, volto aos mitos pretéritos
e outros acrescento aos que amor já criou.
Eis que eu mesmo me torno o mito mais radioso
e talhado em penumbra sou e não sou, mas sou.
Mas sou cada vez mais, eu que não me sabia
e cansado de mim julgava que era o mundo
um vácuo atormentado, um sistema de erros.
Amanhecem de novo as antigas manhãs
que não vivi jamais, pois jamais me sorriram.
Mas me sorriam sempre atrás de tua sombra
imensa e contraída como letra no muro
e só hoje presente.
Deus me deu um amor porque o mereci.
De tantos que já tive ou tiveram em mim,
o sumo se espremeu para fazer um vinho
ou foi sangue, talvez, que se armou em coágulo.
E o tempo que levou uma rosa indecisa
a tirar sua cor dessas chamas extintas
era o tempo mais justo. Era tempo de terra.
Onde não há jardim, as flores nascem de um
secreto investimento em formas improváveis.
Hoje tenho um amor e me faço espaçoso
para arrecadar as alfaias de muitos
amantes desgovernados, no mundo, ou triunfantes
e ao vê-los amorosos e transidos em torno,
o sagrado terror converto em jubilação.
Seu grão de angústia amor já me oferece
na mão esquerda. Enquanto a outra acaricia
os cabelos e a voz e o passo e a arquitetura
e o mistério que além faz os seres preciosos
à visáo extasiada.
Mas, porque me tocou um amor crepuscular,
há que amar diferente. De uma grave paciência
ladrilhar minhas mãos. E talvez a ironia
tenha dilacerado a melhor doação.
Há que amar e calar.
Para fora do tempo arrasto meus despojos
e estou vivo na luz que baixa e me confunde.

Carlos Drummond de Andrade


As sem razões do amor

Eu te amo porque te amo.
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no elipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.


Carlos Drummond de Andrade

Saturday, October 01, 2005

Se eu fosse apenas uma rosa



Se eu fosse apenas uma rosa,
com que prazer me desfolhava,
já que a vida é tão dolorosa
e não te sei dizer mais nada!
Se eu fosse apenas água ou vento,
com que prazer me desfaria,
como em teu próprio pensamento
vais desfazendo a minha vida!
Perdoa-me causar-te a mágoa
desta humana, amarga demora!
- de ser menos breve do que a água,
mais durável que o vento e a rosa...


Cecília Meireles



Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.

Glorifiquei-te no eterno.
Eterno dentro de mim
fora de mim perecível.
Para que desses um sentido
a uma sede indefinível.

Para que desses um nome
à exactidão do instante
do fruto que cai na terra
sempre perpendicular
à humidade onde fica.

E o que acontece durante
na rapidez da descida
é a explicação da vida.


NATÁLIA CORREIA(1923-1993)