Thursday, December 29, 2005

FONTE DE VIDA




(...) Mas tu, com os teus braços de raiz aérea,

puxas-me para esse cimo de montanha onde o silêncio

se transforma em sílaba – a sílaba inicial

do mundo, a interrogação do gesto nascente de todas as

origens, o soluço de um suicídio de murmúrios,

percorrido pela única percepção inútil: a da vida

que se esvai no instante do amor. E encostamo-nos à pedra

abstracta do horizonte. A que nos deixou sem voz quando

as grutas do litoral se abriram; para que a pedra nos beba,

gota a gota, todo o sangue. Então, é nas suas veias

que correm as nossas pulsações. E afastamo-nos, devagar,

para que a terra viva através de nós

uma existência puramente interior, despida

do fulgor animal das manhãs. Sentamo-nos

no mais longínquo dos quartos, de janelas fechadas, e

abraçamo-nos com um rumor de primaveras clandestinas,

com o inverno nos olhos.



NUNO JÚDICE

In A Fonte da Vida (excertos), 1997



MEMÓRIA INTEGRAL

Sou uma memória integral

Carrego vidas recorrentes
na minha vida de agora
mas nada sei da memória causal
a definir-me no dia que ora passa

Habitam-me memórias de profundis
os manifestos efeitos
de existência em existência
Parto e chego
recomeço inconsciente
enquanto
as vozes abafadas
fundíssimas e subtis
incontroláveis
maniatam o livre ser
que eu me creio

Ergue-se um véu antigo
logo outros mil ocultam
histórias sem fim
cóleras águas velhos enredos
choro de alma aprisionada
intermináveis desvios

Sou uma memória integral
uma antiga colectânea
de registos infinitos
camadas sobre camadas
superimpostas
pelo passar inexorável dos tempos

Lembranças de amor e desamor
impressões vagas
sufocantes
do canto da alma

Feridas abertas mas não expostas

Sou
a criadora
da memória total
que eu sou



Sou
a zelosa guardiã
de prisões que me teci
e preservo


Património antigo não visitado
não entendido
á tíbia luz do momento que passa

Sou uma memória integral
caminhante uma vez mais
pelo mesmos gastos caminhos

De entre a luz espreitam as sombras
dos tropeços dos enganos
que engendrei

Sou uma memória integral
Sou memória



Mariana Inverno
Londres, 1 de Maio de 2000

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