Saturday, August 25, 2007

DEUSA DE OLHOS VOLÚVEIS


DEUSA dos olhos volúveis

pousada na mão das ondas:

em teu colo de penumbras,

abri meus olhos atónitos.

Surgi do meio dos túmulos,

para aprender o meu nome.

Mamei teus peitos de pedra

constelados de prenúncios.

Enredei-me por florestas,

entre cânticos e musgos.

Soltei meus olhos no eléctrico

mar azul, cheio de músicas.

Desci na sombra das ruas,

como pelas tuas veias:

meu passo — a noite nos muros —

casas fechadas — palmeiras —

cheiro de chácaras húmidas —

sono da existência efêmera.

O vento das praias largas

mergulhou no teu perfume

a cinza das minhas máguas.

E tudo caíu de súbito,

junto com o corpo dos náufragos,

para os invisíveis mundos.

Vi tantos rôstos ocultos

de tantas figuras pálidas!

Por longas noites inúmeras,

em minha assombrada cara

houve grandes rios mudos

como os desenhos dos mapas.

Tinhas os pés sobre flôres,

e as mãos prêsas, de tão puras.

Em vão, suspiros e fomes

cruzavam teus olhos múltiplos,

despedaçando-se anônimos,

diante da tua altitude.

Fui mudando minha angústia

numa fôrça heróica de asa.

Para construir cada músculo,

houve universos de lágrimas.

Devo-te o modêlo justo:

sonho, dor, vitória e graça.

No rio dos teus encantos,

banhei minhas amarguras.

Purifiquei meus enganos,

minhas paixões, minhas dúvidas.

Despi-me do meu desânimo —

fui como ninguém foi nunca.

Deusa dos olhos volúveis,

rôsto de espêlho tão frágil,

coração de tempo fundo,

— por dentro das tuas máscaras,

meus olhos, sérios e lúcidos,

viram a beleza amarga.

E êsse foi o meu estudo

para o ofício de ter alma;

para entender os soluços,

depois que a vida se cala.

— Quando o que era muito é único

e, por ser único, é tácito.


cecilia meireles

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