Tuesday, January 30, 2007

o livro do desassossego





(...)Com que vigor da minha alma sozinha fiz página sobre página reclusa, vivendo sílaba a sílaba a magia falsa, não do que escrevo mas do que supunha que escrevia! Com que encantamento de bruxedo irónico me julguei poeta da minha prosa, no momento alado em que ele nascia, mais rápida do que os movimentos da pena, como um desforço falaz nos insultos da vida! E afinal, hoje, relendo, vejo rebentar meus bonecos, sair-lhes a palha pelos rasgos, despejarem-se sem sentido...


fernando pessoa

DE CORAÇÃO PARTIDO

O que me espanta
não é a morte
mas a vida, diga-se
a subvida da sobrevida.
O que me espanta
é a inércia do corpo
seu cego apetite
sob a alma inapetente.
O que me espanta
é o fôlego de fera
hibernando na crise
gelo sem primavera.
O que me espanta
é a resistência masoquista
que entre a ferida e o nada
do nada se acovarda
e resigna-se à ferida.




O FOGO


Juntos urdimos a noite
mais seu manto de trevas
quando as paredes recuam
discretas em horizontes
de além-cama e num espaço
de altiplano rolamos
nossos corpos bravios
de animais sem coleira
e juntos acendemos o dia
em cachoeiras de luz
com as centelhas que nós
seres primitivos forjamos
com a pedra lascada
dos sexos vivos.


Astrid Cabral

Monday, January 22, 2007

A porta branca

Gato que me fitas com olhos e vida, quem tens lá no fundo?
Fernando pessoa


Por detrás desta porta,
uma de todas as portas que para mim se abrem e se fecham,
estou eu ou o universo que eu penso.
Deste meu lado, dois olhos que vigiam
os fenómenos naturais, incluindo a celeste mecânica
e as sociedades humanas, sedentárias e transumantes.

Mas podem os olhos fazer a sua enumeração,
e pode o pensado universo infindamente ir-se,
que para mim o que hoje importa
é aquela olhada vaga porta.

Que ela seja só como a vejo, a porta branca,
com duas almofadas em recorte,
lançada devagar sobre o vão do jardim,
onde o gato, por uma fenda aberta
pela sua pata, tenta ver-me,
tão alheio a versos e a universos.


Fiama Hassa Pais Brandão
Cena Vivas
Relógio d´Água

Às vezes as coisas dentro de nós

O que nos chama para dentro de nós mesmos
é uma vaga de luz, um pavio, uma sombra incerta.
Qualquer coisa que nos muda a escala do olhar
e nos torna piedosos, como quem já tem fé.
Nós que tivemos a vagarosa alegria repartida
pelo movimento, pela forma, pelo nome,
voltamos ao zero irradiante, ao ver
o que foi grande, o que foi pequeno, aliás
o que não tem tamanho, mas está agora
engrandecido dentro do novo olhar.



Para Maria de Lourdes Pintasilgo
em breve homenagem

«««««««««««««««««



Lisboa sob névoa


Na névoa, a cidade, ébria
oscila, tomba.
Informes, as casas
perdem o lugar e o dia.
Cravadas no nada,
as paredes são menires,
pedras antigas vagas
sem princípio, sem fim.




Fiama Hasse Pais Brandão
As Fábulas
edições quasi

Friday, January 19, 2007

algumas das palavras


(...)
Para que falar
Seja tão generoso
Como beijar

Para misturar a mulher e o rio
O cristal e a dançarina da tempestade
A aurora e a estação dos seios
Os desejos e a sabedoria das crianças

Para dar à mulher
Pensativa e só
A forma das carícias
Que ela sonhou

(...)

PAUL ELUARD

CÂNTICO

Num impudor de estátua ou de vencida,
Coxas abertas, sem defesa..., nua
Ante a minha vigília, a noite, e a lua,
Ela, agora, descansa, adormecida.

Dos seus mamilos roxos-azuis, em ferida,
Meu olhar desce aonde o sexo estua.
Choro... e porquê? Meu sonho, irreal, flutua
Sobre funduras e confins da vida.

Minhas lágrimas caem-lhe nos peitos...,
Enquanto o luar na nimba, inerte, gasta
Da ternura feroz do meu amplexo.

Cantam-me as veias, poemas nunca feitos...
E eu pouso a boca, religiosa e casta,
Sobre a flor esmagada do seu sexo.



José Régio,
in "Antologia de Poesia Portuguesa Erótica e Satírica"
antígona/frenesi (1999)

dá-me



dá-me algo mais que silêncio ou doçura
algo que tenhas e não saibas
não quero dádivas raras
dá-me uma pedra

não fiques imóvel fitando-me
como se quisesses dizer
que há muitas coisas mudas
ocultas no que se diz

dá-me algo lento e fino
como uma faca nas costas
e se nada tens para dar-me
dá-me tudo o que te falta!


carlos edmundo de ory


“doze nós numa corda"
poemas mudados para português
por herberto helder

Friday, January 12, 2007

a poesia, é sempre perigosa...

“ “A poesia será uma forma de aproximação do Ser. E então quando a poesia não se distingue da mística? Quando os dois processos estão unidos? – Aí se dará a sua exultação.
(…)
Por isso, toda a experiência mística ou poética, é pânica. Ela traz em si mesma, como a visão e a participação, coexistência, do absoluto no efémero humano, uma tensão última, a custo suportável.

Por isso, a contemplação e fruição do absoluto que concede a mística e a poesia, é sempre perigosa para um frágil mortal. Ele é o que nesse preciso instante, nítido e imponderável, deve suportar no seu corpo e alma, a junção entre o ser e o cosmos.”


13-V – 1971

In A FORÇA DO MUNDO de Dalila L. Pereira da Costa

meu olhos, entre águas e areias,




No desequilíbrio dos mares,
as proas giram sozinhas...
Numa das naves que afundaram
é que certamente tu vinhas.


Cecília Meireles

Sombra bela e gentil

"Neste íntimo deserto que se estende
Sempre através de mim, apenas vejo
Um delicado vulto de mulher;
Sombra bela e gentil do meu desejo
Indefinido e vago...aparição
Desta melancolia fraternal,
Que me surgiu, à flor do coração;
E beijando, amorosa, as minhas lágrimas,
Dentro delas, espalha o azul do dia..."

(...)

Teixeira de pascoais




O meu desejo

Vejo-te só a ti no azul dos céus,
Olhando a nuvem de oiro que flutua...
Ó minha perfeição que criou Deu
E que num dia lindo me fez sua!

Nos vultos que diviso pela rua,
Que cruzam os seus passos com os meus...
Minha boca tem fome só da tua!
Meus olhos têm sede só dos teus!

Sombra da tua sombra, doce e calma,
Sou a grande quimera da tua alma
E, sem viver, ando a viver contigo...

Deixa-me andar assim no teu caminho
Por toda a vida, Amor, devagarinho,
Até a morte me levar consigo...


FLORBELA ESPANCA (1894-1930)

Wednesday, January 03, 2007

DO CORAÇÃO VOS DESEJO PAZ...




E A ETERNIDADE É SENTIDA COMO ESTE ESTAR, ESTÁVEL, NO MEIO DO MUNDO, ESTA IDENTIDADE, SINCRONIZAÇÃO COM O RÍTMO CENTRAL E PRIMEIRO. O DO CORAÇÃO.

In A Força do Mundo
Dalila L. Pereira da Costa

Essas antiquíssimas dores...

Essas antiquíssimas dores
não serão finalmente fecundas em nós?
Será tempo de nos libertarmos, amando, da coisa amada...
docemente como quem se desabitua
dos peitos maternos."



Rainer Maria Rilke


“ELA É OUTRO MUNDO”

(..)

E com rubis e rosas, neve e ouro,
Formou sublime e angélica beleza.
Pôs na boca os rubis, e na pureza
Do belo rosto as rosas, por quem mouro;
No cabelo o valor do metal louro;
No peito a neve em que a minha alma tenho acesa.
Mas nos olhos mostrou quanto podia.
E fez deles um sol, onde se apura
A luz mais clara que a do claro dia.

Enfim, Senhora, em vossa compostura
Ela a apurar chegou quanto sabia
De ouro, rosas, rubis, neve e luz pura.



Camões