Digam que foi mentira, que não sou ninguém,
que atravesso apenas ruas da cidade abandonada
fechada como boca onde não encontro nada:
não encontro respostas para tudo o que pergunto
nem na verdade pergunto coisas por aí além
Eu não vivi ali em tempo algum
Nomeei-te no meio dos meus sonhos
chamei por ti na minha solidão
troquei o céu azul pelos teus olhos
e o meu sólido chão pelo teu amor
Contigo aprendi coisas tão simples
como a forma de convívio com o meu cabelo ralo
e a diversa cor que há nos olhos das pessoas
Só tu me acompanhastes súbitos momentos
quando tudo ruía ao meu redor e me sentia só e no cabo do mundo
Contigo fui cruel no dia a dia mais
que mulher tu és já a minha única viúva
Não posso dar-te mais do que te dou
este molhado olhar de homem que morre e
se comove ao ver-te assim presente tão subitamente
MEDITAÇÃO ANCIÃ
Aqui eu fui feliz aqui fui terra
aqui fui tudo quanto em mim se encerra
aqui me senti bem aqui o vento veio
aqui gostei de gente e tive mãe em cada árvore
e até em cada folha aqui enchi o peito e mesmo
até desfeito eu fui aquele que da vida vil se orgulha
Aqui fiquei em tudo aquilo em que passei
um avião um riso uns olhos uma luz
eu fui aqui aquilo tudo até a que me opus
RUY BELO (1933-1978)
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